A Lusa foi tentar perceber a atração da representação para quem 'bateu no fundo', mas se deixou cativar pelos palcos e que, com isso, ganhou a disciplina e o foco necessários para encarar a plateia e, uma vez de regresso à rua, a evitar os problemas.
Artur Fontes, de 58 anos, e Paula Cruz, de 47, ambos com passado ligado ao consumo de droga, são dois dos 15 atores ligados ao grupo de pessoas excluídas socialmente que fazem parte da peça com direção artística de Rui Spranger.
Consumidor de cocaína e de heroína durante 30 anos, Artur chega agitado, com pressa de contar a sua história: "Só muito tarde me foi diagnosticado que tenho Transtorno do Défice de Atenção e Hiperatividade [TDAH], paguei bem caro por não ter sido descoberto antes", disse.
Assumindo ter sido "um consumidor exagerado", a coisa complicou-se com a morte do pai, com quem trabalhava na agência funerária da família, perdendo, assumiu, o controlo da sua vida até "cair no poço".
O teatro chegou através das instituições de que recebeu apoio e, nos últimos 15 anos, somou experiências em palco, fez voluntariado e até já deu formação na área, contou.
Atualmente a fazer uma formação em programas 3D na área da arquitetura, olha para a hora em que o pano subir, às 16:00 de sábado, com alegria e uma certeza: "Vou estar completamente focado, o TDAH não se vai fazer sentir".
Paula Cruz começou a conversa com a Lusa com uma síntese da sua vida: "Uma rapariga inteligente, com pouca família, pouco amor, muito dinheiro, muito sucesso na vida profissional, um percurso atribulado na idade adulta e as drogas que estragaram a vida".
Hoje é a participação no maior número de projetos de teatro que a estimula a continuar, justificando-o como "um sentimento de liberdade enorme e uma autorrealização profunda".
"Sim, eu gosto de levar trabalho para casa quando se trata de teatro", disse, explicando que essa missão passa por conseguir "viver num mundo mais normal, de acordar e trabalhar, preparação física e mental, tudo o que engloba o dia-a-dia de um trabalhador normal".
Quando questionada sobre como vai ser a estreia, Paula olhou para o palco e encheu o peito antes de responder: "Amanhã [sábado] vou estrear numa das principais salas do país. Vai ser uma maravilha! É um sonho realizado".
O diretor artístico Rui Spranger fala das dores de crescimento de um projeto que obriga a ter paciência, a não julgar, mas a ter pulso forte quando o grupo pode ficar em causa.
"Aqui, aquilo que fizemos é combater o estigma, fazer espetáculos que têm uma componente mais social e mais política, e o trabalhar para dentro, que é o resultado deste espetáculo, que é fazer desafios teatrais e artísticos mais exigentes, num processo também que ele é em si também de formação, mas que permita abrir horizontes", descreveu.
E prosseguiu: "Com este espetáculo, procuramos um desafio artístico grande, com algumas pessoas que têm alguma desfuncionalidade e propomos um teatro físico, teatro de 'clown' [palhaço em inglês], que é tecnicamente exigente, e que constituiu um grande desafio e correspondeu a um grande trabalho, um grande esforço da parte de todos".
Sobre a componente da integração social destacou que, além do "sentimento de pertença, estas pessoas passaram a comunicar melhor, a concentrar-se mais, ganharam autoconfiança; isso fez com que algumas pessoas tivessem arranjado trabalho, deixassem de estar numa situação de dependência do RSI [Rendimento Social de Inserção] e hoje são cidadãos contribuintes".
"Por causa disso, tivemos de passar os ensaios, que eram entre as 15h00 e as 17h00, para entre as 18h00 e as 20h00, para poder integrar as pessoas que, entretanto, ou foram trabalhar ou começaram a estudar, ou recomeçaram a estudar", contou.
Os bilhetes custam entre 10 e 16 euros, sendo que metade da receita reverte para a associação Albergues do Porto, que apoia pessoas em situação de sem-abrigo no Porto, e a parte restante da receita será aplicada em atividades de envolvimento comunitário promovidas pelo Teatro Nacional São João.
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