Em vésperas de se assinalar mais um Dia da Criança (01 de junho), uma dezena de jovens ocupa o tempo na associação Juntos pela Mudança, na Quinta do Cabrinha.
Primeiro despacham os trabalhos de casa, à mesa ou ao computador, e só depois jogam matraquilhos ou pingue-pongue ou dão uns toques na bola lá fora.
Em frente, na Quinta do Loureiro, o tráfico e consumo de droga fazem-se a céu aberto e, se a estes dois bairros juntarmos o Ceuta-Sul, temos uma das zonas atualmente mais vulneráveis da capital.
"Este território em si, dada a problemática de tráfico e toxicodependência, traz (...) grandes desafios para estes jovens, que têm todo um ambiente propício a maus comportamentos (...) e o nosso trabalho é um bocadinho dar-lhes alternativas de vida saudáveis", reflete Patrícia Costa, vice-presidente do Projeto Alkantara, que ali se instalou em 1999, quando se deu o realojamento da população do antigo Casal Ventoso nos novos bairros.
Ainda que com "algumas baixas" pelo caminho, o balanço "é positivo" e a criação da Juntos Pela Mudança é disso o maior exemplo, tendo resultado do projeto "Fazer a ponte", no âmbito do qual a equipa do Alkantara, apoiada pelas autoridades locais, capacitou 16 jovens, que, há dois anos, viriam a criar uma associação autónoma, que trabalha na e para a comunidade.
Atualmente presidente da Juntos Pela Mudança, Igor Ramos foi um dos que, durante três meses, recuperaram o espaço devoluto que agora recebe e acompanha cerca de 30 jovens dos três bairros do vale de Alcântara.
Quando saem da escola, Tiago Ramos, 16 anos, e Ariana Santos, 13 anos, vão para o centro, onde fazem os trabalhos de casa e se divertem com os amigos.
Viver no bairro "por um lado é bom, por outro lado é mau", diz Ariana, mencionando como pontos negativos as "confusões", a toxicodependência e os animais abandonados.
"As pessoas daqui não são más, é mais o ambiente... por exemplo, tem muito lixo no bairro, (...) muitos elevadores, muitas casas já a apodrecer", descreve Tiago, pedindo obras e desenvolvimento.
"O bairro também nos une bué em termos de amigos, conhecemos mais a vida, aprendemos mais", realça, garantindo que as portas sempre se abrem a quem vier por bem.
"O nosso desafio é trabalhar para estes jovens, para estas pessoas, para estes bairros", situa Igor, reivindicando "um maior acompanhamento" dos territórios socialmente mais vulneráveis.
Ali, diz, "as pessoas não têm as mesmas respostas", vivem "excluídas, estão num mundo à parte".
A Gebalis considera "fundamental" reforçar a presença de proximidade nos 66 bairros que gere em Lisboa, onde as crianças "têm, de facto, menos oportunidades do que os restantes jovens da cidade", reconhece Mikaella Andrade, assumindo a "visão estratégica" de investir "no desenvolvimento de competências dos mais novos".
Na freguesia de Marvila, enquanto a diretora de intervenção local da empresa pública falava à Lusa, decorria um treino da equipa Inter Marvilense, que integra a Community Champions League (CCL), projeto de inclusão social através do futebol promovido pela Fundação Benfica, em parceria com a Gebalis e as juntas de freguesia dos bairros envolvidos.
Neste projeto, as equipas dos bairros de 11 freguesias da capital competem dentro e fora do campo, tendo de realizar também contribuições comunitárias com vista a "mudar comportamentos" e "sensibilizar a restante comunidade para temas como higiene urbana, limpeza, apropriação dos espaços, requalificação dos espaços", detalha Mikaella Andrade, deixando um exemplo: a Inter Marvilense criou uma letra de 'rap' que incorpora os valores do respeito, da igualdade, do 'fair play'.
Entre outros projetos, a Gebalis promove ainda a Semana Digital, que aproveita o período de férias escolares para, durante uma semana, dar aos jovens competências sobre programação e robótica e que neste ano versará sobre inteligência artificial.
Dentro do polidesportivo Vale do Fundão, uma dezena de meninas e meninos treinam orientados por Henrique Alves.
"Conseguimos a nossa primeira vitória depois de três anos de CCL, mas as nossas vitórias são essencialmente fora de campo. O que pretendemos é que estes miúdos, quando estão aqui connosco, se sintam bem, gostem de estar na nossa presença, consigam aprender, não coisas sobre futebol, mas coisas que possam levar para a vida", reflete o treinador.
A Inter Marvilense "é uma equipa bastante resiliente", destaca Vanessa Madeira, assistente social na Junta de Freguesia de Marvila. "Tem sido um percurso bastante entusiasmante para os miúdos e também para a equipa do projeto", acompanha.
Com 13 anos, Rodrigo Morais encontra "amor e felicidade" na Inter Marvilense. "É bom, porque aprendo a jogar à bola e aprendo coisas novas", diz o jovem, que gosta de morar no bairro, onde tem os amigos e só mudava "o barulho" que às vezes faz à noite.
No exterior, Rafaela Pinheiro, de 12 anos, treina os passes da dança com que se candidatará, de novo, ao programa Talentos do Bairro, iniciativa da Gebalis que visa dar visibilidade ao potencial artístico e criativo de quem vive nas habitações municipais que gere.
Depois de uma primeira reação de estranheza - "as pessoas não estavam habituadas a que a Gebalis entrasse nesta área" -, a primeira edição do Talentos do Bairro surpreendeu pela qualidade das participações, recorda Marlene Almeida.
"O que pretendíamos era encontrar os talentos dos nossos bairros, que sabíamos que existiam, mas estavam escondidos e por vezes não tinham tantas oportunidades para se apresentarem", explica a técnica do departamento de projetos de intervenção comunitária da Gebalis.
"Encontrámos talentos incríveis", assinala, esperando que, na segunda edição, cresça o número de candidaturas, que abrem na segunda-feira, nas áreas da música, dança e artes performativas.
Rafaela - para quem a dança "é uma porta para outro mundo" - quer "poder espalhar" o seu talento "e incentivar outras pessoas a fazerem o mesmo".
Mafalda Rosa vê "brilho" na filha quando dança. "Podemos até não andar em nenhuma escola de dança e, com estes projetos, as pessoas veem que é possível", destaca.
"Não é o bairro que nos identifica, (...) isso não tem nada a ver, se a pessoa tiver um sonho tem de correr atrás dele, quer seja do bairro ou não", insta a mãe de Rafaela, menina que adora "tudo" no bairro Casal dos Machados, onde vive e onde, como diz Igor Ramos, "não há bichos papões, mas pessoas iguais a quaisquer outras".
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