É o que alega Jorge (que pediu para o seu último nome não ser divulgado), pai de dois bebés gémeos e morador no bairro autoconstruído de Penajóia, no concelho de Almada, distrito de Setúbal.
Os filhos foram-lhe retirados após o nascimento, depois de a Segurança Social ter considerado que a casa onde viviam, em Rio de Mouro, no concelho de Sintra (distrito de Lisboa), não tinha as necessárias condições habitacionais.
Jorge concorda que isso era verdade, naquela altura. Mas, entretanto, mudou-se para Penajóia, onde está a acabar de construir uma casa, com as suas próprias mãos, como muitos dos que ali vivem há anos, num terreno que é do Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana.
A Lusa visitou a casa e pôde confirmar que o quarto para acolher os gémeos está pronto, pintado e mobilado. Há ainda uma sala, com sofá e mesa, uma cozinha e uma casa de banho. Só falta terminar o quarto que será dos pais das crianças - Jorge, de 44 anos, e Raquel, de 22.
A casa tem luz e tem água. Como em todo o Bairro de Penajóia, o acesso à habitação faz-se por um caminho de terra batida, numa paisagem pontuada por destroços de automóveis.
"Com o salário que a gente ganha, um salário miserável, não dá para arrendar uma casa com dois quartos, que custa mil e tal euros, para estar com os bebés. A única solução que eu encontrei [foi vir para aqui] fazer uma casa com dignidade e com muito esforço para ter os meus filhos", conta Jorge.
"Fui eu mesmo que construí, com a minha própria mão, com todo o amor e carinho, para estar com os meus filhos, porque os filhos têm direito a estar com a família, com a mãe e com o pai", vinca, rematando: "É melhor estar feliz numa cabana do que ser infeliz numa mansão."
O caso desta família "é um exemplo e apenas um exemplo de uma situação maior", assinala a economista Rita Silva, investigadora no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra e ativista do Vida Justa.
Os advogados que acompanham a mãe, portuguesa, e o pai, de nacionalidade cabo-verdiana e com autorização de residência em Portugal, atestam à Lusa um aumento deste tipo de casos, que "sempre existiram".
Ambos prestam apoio a processos semelhantes há vários anos, o que lhes permite concluir que a apreciação negativa da Segurança Social sobre as condições de habitabilidade não costuma estender-se a "famílias não pobres".
Também o Movimento Democrático de Mulheres se juntou às críticas e, num comunicado divulgado a 28 de março, pediu esclarecimentos à Comissão Nacional de Promoção dos Direitos das Crianças e Jovens sobre a retirada de crianças a famílias em condições socioeconómicas precárias, denunciando uma situação de "violência institucional" e "dupla penalização".
Em entrevista à Lusa, Rita Silva corrobora: "Ao longo de muitos anos no terreno [...], sempre notámos esta pressão sobre as famílias [mais desfavorecidas] da parte dos serviços sociais. O que acontece hoje é, como a crise da habitação está maior, [...] estas situações naturalmente estão a aumentar."
A ativista do Vida Justa considera que tem havido "uma culpabilização e um castigo das famílias que não conseguem ter acesso à habitação ou que não têm acesso à habitação adequada".
Essa situação, recorda, "não é uma casualidade que caiu do céu", já que a habitação "é uma responsabilidade do Estado" e "um direito fundamental".
Faltam, pois, "políticas adequadas", aponta a economista, considerando que "é injusto e é errado que se penalize as famílias", que se sentem "impotentes perante essa máquina do Estado que lhes diz 'tens que arranjar uma casa adequada para poderes ter os teus filhos'".
Essas famílias "sofrem esta situação de uma forma muito isolada", pois "há um medo muito grande" e "muito silêncio à volta disto", nota Rita Silva, reivindicando "uma discussão pública mais séria" sobre este tema.
"Não estamos contra a sinalização de crianças que possam ter problemas do ponto de vista do acesso à habitação", ressalva. Esse trabalho, acrescenta, deve ser feito "no sentido de responsabilizar o Estado" para "encontrar soluções habitacionais adequadas" e não as famílias que não têm condições para pagar uma renda.
Além disso, "os custos de institucionalizar uma criança são muitíssimo elevados e podem chegar a mil euros por mês", estima, sugerindo que sejam "redirecionados para apoiar as famílias no sentido de elas conseguirem ter acesso a uma habitação mais digna".
No Bairro de Penajóia, "que, no último ano, cresceu muito", vivem cerca de 600 famílias (cerca de três mil pessoas), entre as quais Jorge e Raquel, que estão a ter dificuldade em reaver os seus filhos, com quase 2 anos. Visitam-nos três vezes por semana, durante uma hora, na instituição para onde as crianças foram encaminhadas, localizada em Lisboa, apesar de os pais viverem no concelho de Almada.
Conforme relataram à Lusa, estão "sempre" a falar-lhes na hipótese de as crianças seguirem para adoção. "Isso nunca vai acontecer, porque eu vou lutar com unhas e dentes para ter os meus filhos junto comigo", reage Jorge, admitindo que se sente "pressionado".
O pai lamenta ainda que a Segurança Social não tenha voltado à casa, que já visitou por duas vezes, para ver como ficou depois das obras: "Agora já tenho uma habitação digna, uma habitação como eles querem."
O debate entre as partes em tribunal, que chegou a estar agendado para 09 de abril, foi adiado para junho, depois de um dos advogados ter pedido a realização de perícias psicológicas ao pai e à mãe, por considerar que tal apreciação deve ser feita por quem tem competência para o fazer e não pelos serviços da Segurança Social.
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