"Nunca haverá solução para o problema das pessoas em situação de sem-abrigo. Aquela fantasia que o Presidente da República [Marcelo Rebelo de Sousa] desenvolveu aqui há uns anos de que acabaríamos -- só a palavra 'acabar' arrepia-me todo --, acabar com os sem-abrigo remete para uma solução final, uma coisa do tipo holocausto", afirmou João Gama Marques, no âmbito de uma audição com deputados da Assembleia Municipal de Lisboa.
Por proposta da deputada do CDS-PP Margarida Neto, aprovada por unanimidade, o psiquiatra João Gama Marques foi ouvido na 6.ª Comissão Permanente - Direitos Humanos e Sociais, Cidadania e Transparência e Combate à Corrupção a propósito de uma petição de moradores e comerciantes do Beato que exigem a revisão do plano municipal e das intervenções sociais da Câmara de Lisboa para pessoas em situação de sem-abrigo.
A trabalhar há quase 20 anos no Hospital Júlio de Matos, João Gama Marques acompanha pessoas em situação de sem-abrigo com perturbação psiquiátrica, inclusive integra, quinzenalmente, as visitas de rua da Equipa de Projeto do Plano Municipal para a Pessoa em Situação de Sem-Abrigo de Lisboa, dando continuidade ao legado do psiquiatra António Bento.
Relativamente ao combate desta problemática, o psiquiatra considerou "impensável" pensar numa solução com "contornos de genocídio ou de limpeza étnica" e assegurou que "enquanto houver democracia vai haver sempre pessoas em situação de sem-abrigo".
Sobre a situação do Beato, umas das 24 freguesias de Lisboa e que concentra 1/4 das respostas aos sem-abrigo na cidade, com quatro centros de acolhimento, que apoiam cerca de 600 pessoas, o psiquiatra disse que a população tem razões para se queixar devido à degradação da qualidade de vida.
"Não faz sentido termos a concentração de tantas respostas no mesmo sítio. No fundo, é um gueto. [...] Parece que o Beato é o caixote do lixo e os sem-abrigo são o lixo. [...] Vai haver cada vez mais revolta por parte da população, com menos empatia, menos sensibilidade, mais preconceito, mais estigma", antecipou, defendendo respostas mais pequenas e dispersas pela cidade.
Sobre os sem-abrigo com perturbação psiquiátrica, João Gama Marques indicou que "a percentagem de pessoas que vivem nas ruas de Lisboa que têm doença mental grave flutua" e adiantou que se verifica um aumento de pessoas estrangeiras sem-abrigo e, por isso, "a prevalência de doença mental caiu brutalmente".
"Quase todos esses estrangeiros não terão doença mental grave", sublinhou, ressalvando que estas pessoas poderão ter depressão ou perturbação de stress pós-traumático, por causa das vivências nos países de origem, inclusive em cenários de guerra.
"Nesta fase, haverá menos doentes mentais a viver nas ruas de Lisboa", reforçou, sem adiantar números concretos.
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